Neste post estou considerando o termo "interpretação" no sentido de execução musical, ou seja, ao processo musical de transformar a música escrita (em partituras ou registros escritos) em música propriamente dita, criando a experiência sonora ao ouvinte.
As incontáveis variações e diferenças que aparecem nas interpretações é o que torna, na minha opinião, a música erudita tão interessante. Nem mesmo peças célebres são imunes a uma interpretação medíocre, e o contrário também ocorre: peças simples crescendo em força e sonoridade, graças a uma excelente interpretação. É como disse Gustav Mahler, em uma frase parecida com esta: "A partitura tem tudo sobre a música, exceto o essencial." O próprio Carlos Gomes, em carta a Francisco Braga, escreveu que "a música é expressão e expressão não se escreve".
É evidente que este assunto é vastíssimo e complexo. A interpretação está apoiada e limitada em vários outros fatores, igualmente diversos e complexos, tais como partituras com especificações não muito exatas, perícia dos músicos no que diz respeito ao domínio de seus instrumentos (assim como a qualidade dos próprios instrumentos), gosto pessoal dos maestros, modificações na orquestração, etc.
Se você conhece o mínimo de música erudita já deve ter percebido como diferentes interpretações podem realmente afetar profundamente a obra. Mas vamos explorar o assunto de uma forma prática. Escolhi uma obra de Mozart para mostrar, usando alguns videos, como uma mesma obra soa diferente dependendo de quem a está executando.
A obra escolhida foi o Divertimento em Ré Maior, KV 136, em seu terceiro movimento, "Presto". A primeira coisa é ter em mãos a partitura da obra. Neste ponto já temos o primeiro problema, ou seja, o primeiro ponto onde podem começar as diferenças. A pergunta é: "qual partitura?" Sim, pois não temos em mãos a original manuscrita de Mozart (e não seria muito útil, a menos que já estivéssemos acostumados com a caligrafia dele). Então as partituras que temos são cópias das cópias das cópias... O quanto distante isto já está da ideia original do compositor? Este é o primeiro ponto, no qual começam a nascer as potenciais diferenças.
Vamos tentar então pegar a partitura mais confiável que conseguirmos. Temos esta:
IMSLP64150-PMLP14900-Mozart_Werke_Breitkopf_Serie_14_KV136.pdf
(Aliás, perguntinha rápida: você conhece o IMSLP? Se você curte música erudita e não conhece o IMSLP, então sua vida está prestes a mudar.... clique aqui e impressione-se)
É uma partitura para quarteto de cordas. Na página 8(284) inicia-se o Presto. Aqui, outro ponto onde as diferenças podem se acentuar ainda mais. Na partitura diz apenas "Presto" e nada mais. Não temos o tempo exato que Mozart imaginou ao compor a obra. Que valor colocamos no metrônomo? Este é um motivo de muita discussão. Veja
neste link de teoria musical os vários valores aceitáveis para as mais diferentes marcações de tempo. Para "Presto" temos o seguinte:
- 100-152 bpm (some sources suggest 168-208 bpm)
- (a nineteenth-century Maezel metronome suggests 160 bpm)
- (a 1950 metronome suggests 144 bpm)
- (a modern electronics metronome suggests 180 bpm)
Então, dependendo da escola do músico, de sua formação musical, dependendo da literatura na qual ele se baseia, podemos ter uma execução que vai de 100 bpm até 208 bpm!!! Não sei se você tem uma noção clara do quanto um extremo difere do outro. Se não tem, vamos ver então, na prática. De posse da partitura e de um metrônomo (se você não tem um, pode usar um
metrônomo on-line, como este aqui), tente solfejar a música em 100 bpm e depois em 208 bpm.
Bom, certamente você já percebeu que, apesar destes valores estarem presentes na literatura, é bem estúpido considerar ambos como "Presto". Mas então, qual valor usar? O ponto médio entre os extremos? Quais extremos? A partir deste ponto, não existem mais respostas certas e erradas. Vai depender de como você vai interpretar a obra. A título de curiosidade, com o passar dos anos esta bagunça foi sendo eliminada com os compositores colocando o valor explicitamente na partitura (por exemplo, M.M. = 160), complementando de maneira mais exata a palavra (ou frase) que indica o andamento. Alguns músicos acham que isto deixa a partitura "engessada demais", pois o compositor não dá liberdade na escolha do metrônomo. Ora, isto é idiotice pois há muito mais em jogo. Definir com exatidão o metrônomo não deixa coisa alguma engessada, apenas coloca uma definição mais correta em algo que deveria ser, por definição, matematicamente exato. E músicos não são computadores executando um arquivo MIDI... haverão naturalmente acelerações, retardos, etc, etc., tudo dentro do que se espera de músicos humanos e emocionais, só que tendo como base o metrônomo.
A seguir, eu vou colocar 3 videos com diferentes interpretações da obra em questão. No primeiro, temos Herbert von Karajan conduzindo a Filarmônica de Berlim. O "Presto" começa aos 9:16. Pode ir direto até lá e ouça o "tio Herbert" apressado, castigando a orquestra... devia estar atrasado para algum compromisso, ou algo assim.
No segundo vídeo, não sei quem são os interpretes. Só sei que são lerdos. O "Presto" começa aos 14:27. Ouça:
Neste terceiro vídeo, a execução foi feita pelo pessoal da
Drottningholm Baroque Ensemble, utilizando instrumentos autênticos da época barroca. Antes que os puristas pulem de alegria, vou provocar aqui com minha opinião: usar instrumentos de época não é, necessariamente, sinônimo de melhor sonoridade. Felizmente, os instrumentos evoluíram muito desde aquela época. Ouça e tire suas próprias conclusões:
E então? Qual você gostou mais?
Antes de responder (ou se você não gostou de nenhuma delas, o que é mais provável....), ouça a interpretação de Seiji Ozawa, conduzindo a
Mito Chamber Orchestra, vindo de uma modesta gravação em VHS de 1990.
E agora? Me arrisco a dizer que agora sim, este movimento "agradou seu ouvido e alegrou seu coração". Na minha opinião, a melhor interpretação deste movimento é algo bem próximo a isto. Interpretação limpa, exata, com energia e leveza, levando o andamento "Presto" nem para um extremo nem para outro.
Este pequeno exercício foi só para ilustrar o quanto a interpretação influencia no resultado sonoro, assim como as escolhas acerca da instrumentação, etc. Para quem gosta de música erudita, uma das dificuldades (mas, ao mesmo tempo, é um dos prazeres) é 'garimpar' as melhores interpretações. Muitas vezes vale a pena até pagar por isto, por um determinado CD ou DVD que contém aquela interpretação perfeita! A busca pelas melhores interpretações é algo que acompanha o ouvinte apreciador de boa música por toda a vida.